A Câmara dos Deputados
aprovou recentemente o projeto de lei que cria o chamado "Marco
Civil da Internet", que no momento aguarda apreciação no
Senado. A ideia original do projeto era servir como uma espécie de
declaração de direitos na Internet. Pensou-se em fazer um certo
contraponto com a tendência, então saliente, de sobrevalorizar os
aspectos negativos e a prática de delitos por meio de computadores,
como se a grande rede fosse um novo faroeste a precisar de um xerife
durão. Ou seja, antes de criminalizar comportamentos ou proibir,
proibir e proibir, deveríamos definir direitos e liberdades.
Para ser sincero, o
Marco Civil, como consta do texto final do projeto aprovado na
Câmara, não é exatamente a lei dos meus sonhos. É um texto muito
prolixo e, por isso, potencialmente confuso. Mas isso fica - se o
tempo permitir - para uma outra discussão. Há ao menos um tema
interessante no projeto que quero aqui abordar, pois tem sido mal
entendido, a ponto de suscitar críticas que beiram o
incompreensível. Trata-se do chamado "princípio da
neutralidade da rede".
O princípio da
neutralidade da rede, em poucas palavras, propõe que tudo o que
trafega na Internet deve ser tratado de modo neutro, isonômico,
pelos que detêm algum poder sobre os canais de comunicação.
Observa-se inúmeros
textos publicados na Web, e que via de regra são instintivamente
compartilhados nas redes sociais, apontando a neutralidade da rede
como uma forma de intervencionismo estatal, ou como se o governo
brasileiro (que, diga-se, não foi o criador desse conceito)
estivesse tentando interferir no funcionamento da grande rede.
Ora, neutralidade é
uma palavra que, em si, já não parece combinar com intervencionismo
estatal, mesmo porque, assegurada por lei, o próprio Estado haveria
de respeitá-la, quando ele próprio também fornecer acesso, ou de
qualquer modo puder interferir nos canais de comunicação que
compõem a grande rede.
Evidentemente, o
estudioso atento não pode descartar de pronto aquele fenômeno
orwelliano de se propor belos conceitos cuja execução prática seja
exatamente o seu oposto, como chamar de Ministério do Amor o órgão
que realizava a tortura de inimigos do regime. Assim, é claro que
princípios com nomes bonitos não devem nos contentar; importa,
pois, verificar exatamente o que estabelece o texto legal que os
define.
Vamos, então, à fonte
primária, isto é, ao texto aprovado. Diz o art. 9º, sobre
neutralidade da rede, que:
"Art. 9º O responsável
pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de
forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por
conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§1º A discriminação
ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das
atribuições privativas do Presidente da República previstas no
inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução
desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional
de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
I - requisitos técnicos
indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações;
e
II - priorização a
serviços de emergência.
§2º Na hipótese de
discriminação ou degradação do tráfego prevista no §1º, o
responsável mencionado no caput deve:
I - abster-se de causar
dano aos usuários, na forma do art. 927 do Código Civil;
II - agir com
proporcionalidade, transparência e isonomia;
III - informar
previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo
aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação
de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da
rede; e
IV - oferecer serviços
em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de
praticar condutas anticoncorrenciais.
§3º Na provisão de
conexão à Internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão,
comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou
analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto
neste artigo."
Não me parece a melhor
das redações para instituir a neutralidade da rede nessas terras
tropicais, mas minhas críticas a esse texto, para não me alongar
demais sobre essa outra questão paralela, incidiriam sobre as pouco
precisas e muito prolixas ressalvas feitas nos parágrafos.
Entretanto, não é
isso o que se tem criticado a respeito dessa regra, mas sim o próprio
princípio em si, isto é, o que se vê definido no caput do citado
artigo. Não se duvida que todos têm o direito de expressar suas
críticas, mas o problema que nelas vejo é que o princípio em
comento é criticado justamente pelo que ele não é: uma forma de
intervencionismo estatal, ou uma interferência indevida na livre
iniciativa privada.
Como exemplo desse tipo
de crítica, cito o artigo cujo título e link seguem abaixo:
Sugiro que leiam todo o
texto, antes de prosseguirem nestas minhas linhas.
Tentando ser didático
(e como poucos entendem o que significa "pacotes de dados"
e outras especificidades tecnológicas mencionadas no supra citado
art. 9º), aquele autor faz comparações com outros setores da
economia e traça suas analogias sobre o que a ali criticada
neutralidade da rede significaria nesses outros cenários mais
palpáveis à compreensão do leitor médio. Vou transcrever uma
delas, que tenta estabelecer uma comparação com as rodovias:
"Primeiro exemplo:
diferenciação da cobrança do pedágio por eixo ou por tamanho do
veículo.
Essa é uma das formas
de discriminação mais corriqueiras que existem. Nas inúmeras
rodovias mundo afora transitam vários tipos de veículos de tamanhos
distintos, com variados números de eixos, com diferentes quantidades
de carga etc. Veja aqui um exemplo de pedágio em que as
motocicletas são isentas de pagamento ao passo que veículos de
passeio ou comerciais pagam uma tarifa.
Há algum defensor da
neutralidade de rede que reclame de haver pedágio diferenciado por
eixo do veículo ou por tamanho do veículo?"
A minha resposta a essa
pergunta, sem dúvida, seria "não". É justo que veículos
paguem por seus vários eixos.
O problema é que o
exemplo não se encaixa bem no ambiente que está em discussão. Se
quiserem comparar com rodovias, as perguntas que mais se aproximariam
do universo de uma rede de computadores e do que a neutralidade da
Internet representa seriam as seguintes:
a) Poderia o dono da
estrada cobrar mais pedágio do caminhão de soja do que do caminhão
de feijão, ambos com mesmo número de eixos e mesmo peso?
b) Poderia o dono da
estrada cobrar pedágio mais elevado, em cada praça de pedágio, do
caminhão de soja que vem do Mato Grosso, do que do caminhão de soja
que vem de Goiás? Ou cobrar mais daquele que vai para Minas Gerais,
do que o que vai para o Rio de Janeiro? (Para deixar bem claro: estou
questionando o preço em cada ponto de cobrança, e não pelo trajeto
total, que certamente pode variar se for mais ou menos longo).
c) Poderia o dono da
estrada cobrar mais pedágio do caminhão de soja que vem da Fazenda
X do que daquele que vem da Fazenda Y (digamos que esta seja dele
próprio, ou de seus amigos ou parentes)?
d) Ou, em qualquer
desses cenários polarizados descritos acima, poderia o dono da
estrada determinar que uns desses caminhões tenham que fazer um
longo "pit stop" em algum local, enquanto outros seriam
prontamente liberados para seguir diretamente aos seus destinos?
e) Ou discriminar
caminhões feitos pela montadora K, dando prioridade aos que usam
caminhões da fabricante Z.
Que tal? Algum opositor
da neutralidade da rede entende razoável dar esse poder ao dono da
estrada?
Aos que defendem a
livre concorrência: as safras de soja de MT e de GO deveriam
concorrer pela sua qualidade e preço ou pelo poder ou influência
que seus produtores possam ter sobre as estradas? Os caminhões K e Z
deveriam concorrer pela robustez, confiabilidade, custo ou fácil
manutenção, ou pela associação que as respectivas montadores
conseguissem fazer com os donos da estrada?
Ao estabelecer que
todos os pacotes de dados sejam tratados isonomicamente, isso
desconcentra o poder que os canais de comunicação possam ter sobre
a própria comunicação, assegurando que a Internet continue a ser o
que dela se espera, isto é, uma espécie de canal público e
universal de comunicação, ainda que se valha de estruturas privadas
que se interconectam. Mesmo porque a Internet é o que é hoje
porque é muito mais do que cabos ou ondas de rádio: há toda uma
infraestrutura lógica de protocolos de uso livre e um incalculável
patrimônio imaterial resultante da própria existência de uma
interconexão de todos com todos, na qual todos querem se juntar.
Isso não pode ser apropriado com exclusividade por ninguém, sejam
empresas ou governos.
No entanto, dispensado
o dever que o caput do art. 9º estabelece, coisas como as abaixo
citadas poderiam acontecer:
a) José tem conexão à
rede pelo provedor X. O provedor X tem uma página de notícias
online chamada XA. Toda vez que José tentar ler notícias do jornal
YA, concorrente de XA, os pacotes serão "filtrados" e
ficarão "dormindo" alguns segundos extras, enquanto os
pacotes vindos do jornal XA chegarão velozes como um raio. Como é
entediante aguardar páginas lentas, José possivelmente preferirá
ler as notícias que chegam rapidamente de XA.
b) Ou o provedor X pode
fazer ofertas aos sites A e B (podem ser jornais, lojas online,
organizações políticas, cursos à distância, qualquer tipo, enfim, de sites
concorrentes): quem lhe paga mais para passar na frente os seus
pacotes e deixar os do concorrente num "loop" bem demorado?
Ou quanto mais B, por exemplo, estaria disposto a pagar a X para
atrasar progressivamente mais os pacotes de A? Ou quem sabe
bloqueá-los algumas horas do dia, alguns dias da semana, de modo a
fazer com que seus potenciais visitantes dele desistam?
c) Diante de dois
diferentes softwares de conexão à rede, Alfa e Beta, o provedor X
poderia pedir um jabá a mais ao fabricante de Alfa, para que os
pacotes que venham dele sejam priorizados, em detrimento dos pacotes
enviados pelo software Beta.
Pode-se pensar que, se
o provedor X faz isso com alguns sites, o provedor Y poderia fazer
com outros, idem o provedor Z. Isso seria o fim da Internet como uma
rede única, que permita igualmente a conexão de todos com todos. E
tende à concentração de poder, o que é também avesso à ideia de
livre concorrência. No limite dessa escalada de filtragens e
preferências, podemos em tese chegar a um cenário de feudalização
da rede, em que teríamos que pagar pedágios a diversos senhores
feudais para conseguir chegar aos diferentes locais virtuais, isto é,
ter que contratar várias conexões diferentes para obter acesso a
serviços diversos.
Os serviços de conexão
à Internet costumam ser remunerados segundo a "velocidade"
da conexão (os tais Kbps ou Mbps por segundo) e pelo tráfego em
volume absoluto de dados transferidos (em número de Mbytes ou Gbytes
totais por mês). Isso não é proibido pelo texto aprovado na Câmara
dos Deputados. Nem será proibido cobrar diferentemente o cliente
segundo o horário de seu tráfego, exemplo que o artigo supra citado
também utiliza para criticar o projeto. O que o projeto proíbe é
cobrar mais ou menos em função do conteúdo, origem ou destino dos
pacotes, tipo de serviço ou aplicativo utilizado, como nos exemplos
que dei acima, bens que não são gerados nem oferecidos pelos
provedores de acesso.
Enfim, a neutralidade
da rede é um princípio voltado a impedir o abuso de poder e formação de cartéis ou oligopólios por parte
de quem detenha os canais de comunicação por que trafegam os dados,
assegurando a liberdade dos usuários de utilizar os serviços online
que melhor lhes aprouverem, garantindo que nenhum desses destinos
tenha sua acessibilidade artificialmente cerceada, seja por
interesses econômicos ou políticos. Assegura, pois, a livre
concorrência entre os serviços oferecidos por meio da rede (sites,
lojas online etc).
E em nenhum momento
atinge a livre concorrência entre os que proporcionam os serviços
de conexão, para que estabeleçam diferentes produtos, com
diferentes níveis de tráfego ou velocidade, e sejam então
remunerados por aquilo que efetivamente oferecem aos respectivos
clientes.
É, portanto, uma
proposta libertária - se executada com fidelidade aos seus
propósitos - e não totalitária, como alguns críticos têm
sugerido.