sábado, 19 de abril de 2014

Marco Civil da Internet: o que significa neutralidade da rede e por que isso é importante?


A Câmara dos Deputados aprovou recentemente o projeto de lei que cria o chamado "Marco Civil da Internet", que no momento aguarda apreciação no Senado. A ideia original do projeto era servir como uma espécie de declaração de direitos na Internet. Pensou-se em fazer um certo contraponto com a tendência, então saliente, de sobrevalorizar os aspectos negativos e a prática de delitos por meio de computadores, como se a grande rede fosse um novo faroeste a precisar de um xerife durão. Ou seja, antes de criminalizar comportamentos ou proibir, proibir e proibir, deveríamos definir direitos e liberdades.

Para ser sincero, o Marco Civil, como consta do texto final do projeto aprovado na Câmara, não é exatamente a lei dos meus sonhos. É um texto muito prolixo e, por isso, potencialmente confuso. Mas isso fica - se o tempo permitir - para uma outra discussão. Há ao menos um tema interessante no projeto que quero aqui abordar, pois tem sido mal entendido, a ponto de suscitar críticas que beiram o incompreensível. Trata-se do chamado "princípio da neutralidade da rede".

O princípio da neutralidade da rede, em poucas palavras, propõe que tudo o que trafega na Internet deve ser tratado de modo neutro, isonômico, pelos que detêm algum poder sobre os canais de comunicação.

Observa-se inúmeros textos publicados na Web, e que via de regra são instintivamente compartilhados nas redes sociais, apontando a neutralidade da rede como uma forma de intervencionismo estatal, ou como se o governo brasileiro (que, diga-se, não foi o criador desse conceito) estivesse tentando interferir no funcionamento da grande rede.

Ora, neutralidade é uma palavra que, em si, já não parece combinar com intervencionismo estatal, mesmo porque, assegurada por lei, o próprio Estado haveria de respeitá-la, quando ele próprio também fornecer acesso, ou de qualquer modo puder interferir nos canais de comunicação que compõem a grande rede.

Evidentemente, o estudioso atento não pode descartar de pronto aquele fenômeno orwelliano de se propor belos conceitos cuja execução prática seja exatamente o seu oposto, como chamar de Ministério do Amor o órgão que realizava a tortura de inimigos do regime. Assim, é claro que princípios com nomes bonitos não devem nos contentar; importa, pois, verificar exatamente o que estabelece o texto legal que os define.

Vamos, então, à fonte primária, isto é, ao texto aprovado. Diz o art. 9º, sobre neutralidade da rede, que:

"Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização a serviços de emergência.

§2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no §1º, o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 do Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§3º Na provisão de conexão à Internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo."

Não me parece a melhor das redações para instituir a neutralidade da rede nessas terras tropicais, mas minhas críticas a esse texto, para não me alongar demais sobre essa outra questão paralela, incidiriam sobre as pouco precisas e muito prolixas ressalvas feitas nos parágrafos.

Entretanto, não é isso o que se tem criticado a respeito dessa regra, mas sim o próprio princípio em si, isto é, o que se vê definido no caput do citado artigo. Não se duvida que todos têm o direito de expressar suas críticas, mas o problema que nelas vejo é que o princípio em comento é criticado justamente pelo que ele não é: uma forma de intervencionismo estatal, ou uma interferência indevida na livre iniciativa privada.

Como exemplo desse tipo de crítica, cito o artigo cujo título e link seguem abaixo:


Sugiro que leiam todo o texto, antes de prosseguirem nestas minhas linhas.

Tentando ser didático (e como poucos entendem o que significa "pacotes de dados" e outras especificidades tecnológicas mencionadas no supra citado art. 9º), aquele autor faz comparações com outros setores da economia e traça suas analogias sobre o que a ali criticada neutralidade da rede significaria nesses outros cenários mais palpáveis à compreensão do leitor médio. Vou transcrever uma delas, que tenta estabelecer uma comparação com as rodovias:

"Primeiro exemplo: diferenciação da cobrança do pedágio por eixo ou por tamanho do veículo.

Essa é uma das formas de discriminação mais corriqueiras que existem. Nas inúmeras rodovias mundo afora transitam vários tipos de veículos de tamanhos distintos, com variados números de eixos, com diferentes quantidades de carga etc. Veja aqui um exemplo de pedágio em que as motocicletas são isentas de pagamento ao passo que veículos de passeio ou comerciais pagam uma tarifa.

Há algum defensor da neutralidade de rede que reclame de haver pedágio diferenciado por eixo do veículo ou por tamanho do veículo?"

A minha resposta a essa pergunta, sem dúvida, seria "não". É justo que veículos paguem por seus vários eixos.

O problema é que o exemplo não se encaixa bem no ambiente que está em discussão. Se quiserem comparar com rodovias, as perguntas que mais se aproximariam do universo de uma rede de computadores e do que a neutralidade da Internet representa seriam as seguintes:

a) Poderia o dono da estrada cobrar mais pedágio do caminhão de soja do que do caminhão de feijão, ambos com mesmo número de eixos e mesmo peso?

b) Poderia o dono da estrada cobrar pedágio mais elevado, em cada praça de pedágio, do caminhão de soja que vem do Mato Grosso, do que do caminhão de soja que vem de Goiás? Ou cobrar mais daquele que vai para Minas Gerais, do que o que vai para o Rio de Janeiro? (Para deixar bem claro: estou questionando o preço em cada ponto de cobrança, e não pelo trajeto total, que certamente pode variar se for mais ou menos longo).

c) Poderia o dono da estrada cobrar mais pedágio do caminhão de soja que vem da Fazenda X do que daquele que vem da Fazenda Y (digamos que esta seja dele próprio, ou de seus amigos ou parentes)?

d) Ou, em qualquer desses cenários polarizados descritos acima, poderia o dono da estrada determinar que uns desses caminhões tenham que fazer um longo "pit stop" em algum local, enquanto outros seriam prontamente liberados para seguir diretamente aos seus destinos?

e) Ou discriminar caminhões feitos pela montadora K, dando prioridade aos que usam caminhões da fabricante Z.

Que tal? Algum opositor da neutralidade da rede entende razoável dar esse poder ao dono da estrada?

Aos que defendem a livre concorrência: as safras de soja de MT e de GO deveriam concorrer pela sua qualidade e preço ou pelo poder ou influência que seus produtores possam ter sobre as estradas? Os caminhões K e Z deveriam concorrer pela robustez, confiabilidade, custo ou fácil manutenção, ou pela associação que as respectivas montadores conseguissem fazer com os donos da estrada?

Ao estabelecer que todos os pacotes de dados sejam tratados isonomicamente, isso desconcentra o poder que os canais de comunicação possam ter sobre a própria comunicação, assegurando que a Internet continue a ser o que dela se espera, isto é, uma espécie de canal público e universal de comunicação, ainda que se valha de estruturas privadas que se interconectam. Mesmo porque a Internet é o que é hoje porque é muito mais do que cabos ou ondas de rádio: há toda uma infraestrutura lógica de protocolos de uso livre e um incalculável patrimônio imaterial resultante da própria existência de uma interconexão de todos com todos, na qual todos querem se juntar. Isso não pode ser apropriado com exclusividade por ninguém, sejam empresas ou governos.

No entanto, dispensado o dever que o caput do art. 9º estabelece, coisas como as abaixo citadas poderiam acontecer:

a) José tem conexão à rede pelo provedor X. O provedor X tem uma página de notícias online chamada XA. Toda vez que José tentar ler notícias do jornal YA, concorrente de XA, os pacotes serão "filtrados" e ficarão "dormindo" alguns segundos extras, enquanto os pacotes vindos do jornal XA chegarão velozes como um raio. Como é entediante aguardar páginas lentas, José possivelmente preferirá ler as notícias que chegam rapidamente de XA.

b) Ou o provedor X pode fazer ofertas aos sites A e B (podem ser jornais, lojas online, organizações políticas, cursos à distância, qualquer tipo, enfim, de sites concorrentes): quem lhe paga mais para passar na frente os seus pacotes e deixar os do concorrente num "loop" bem demorado? Ou quanto mais B, por exemplo, estaria disposto a pagar a X para atrasar progressivamente mais os pacotes de A? Ou quem sabe bloqueá-los algumas horas do dia, alguns dias da semana, de modo a fazer com que seus potenciais visitantes dele desistam?

c) Diante de dois diferentes softwares de conexão à rede, Alfa e Beta, o provedor X poderia pedir um jabá a mais ao fabricante de Alfa, para que os pacotes que venham dele sejam priorizados, em detrimento dos pacotes enviados pelo software Beta.

Pode-se pensar que, se o provedor X faz isso com alguns sites, o provedor Y poderia fazer com outros, idem o provedor Z. Isso seria o fim da Internet como uma rede única, que permita igualmente a conexão de todos com todos. E tende à concentração de poder, o que é também avesso à ideia de livre concorrência. No limite dessa escalada de filtragens e preferências, podemos em tese chegar a um cenário de feudalização da rede, em que teríamos que pagar pedágios a diversos senhores feudais para conseguir chegar aos diferentes locais virtuais, isto é, ter que contratar várias conexões diferentes para obter acesso a serviços diversos.

Os serviços de conexão à Internet costumam ser remunerados segundo a "velocidade" da conexão (os tais Kbps ou Mbps por segundo) e pelo tráfego em volume absoluto de dados transferidos (em número de Mbytes ou Gbytes totais por mês). Isso não é proibido pelo texto aprovado na Câmara dos Deputados. Nem será proibido cobrar diferentemente o cliente segundo o horário de seu tráfego, exemplo que o artigo supra citado também utiliza para criticar o projeto. O que o projeto proíbe é cobrar mais ou menos em função do conteúdo, origem ou destino dos pacotes, tipo de serviço ou aplicativo utilizado, como nos exemplos que dei acima, bens que não são gerados nem oferecidos pelos provedores de acesso.

Enfim, a neutralidade da rede é um princípio voltado a impedir o abuso de poder e formação de cartéis ou oligopólios por parte de quem detenha os canais de comunicação por que trafegam os dados, assegurando a liberdade dos usuários de utilizar os serviços online que melhor lhes aprouverem, garantindo que nenhum desses destinos tenha sua acessibilidade artificialmente cerceada, seja por interesses econômicos ou políticos. Assegura, pois, a livre concorrência entre os serviços oferecidos por meio da rede (sites, lojas online etc).

E em nenhum momento atinge a livre concorrência entre os que proporcionam os serviços de conexão, para que estabeleçam diferentes produtos, com diferentes níveis de tráfego ou velocidade, e sejam então remunerados por aquilo que efetivamente oferecem aos respectivos clientes.

É, portanto, uma proposta libertária - se executada com fidelidade aos seus propósitos - e não totalitária, como alguns críticos têm sugerido.

sábado, 23 de novembro de 2013

Internet e Liberdade de Expressão

Recebi nesta semana o DVD com esta gravação, então disponibilizo aqui a íntegra de minha palestra sobre o tema "Internet e Liberdade de Expressão: aspectos jurídicos e políticos", proferida no dia 26 de setembro de 2013, no VI Congresso Brasileiro da Sociedade da Informação, organizado pelo Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da FMU, em parceria com a OAB-SP.

O vídeo dura 40 minutos.


sábado, 4 de maio de 2013

Só os sistemas informáticos judiciários são imunes a falhas?

Adianto que a resposta à pergunta do título é óbvia: é claro que não!

Nenhum sistema informático é imune a falhas. Meu guru predileto nessa área - e creio que seja o de todos que se interessam pelo tema - é Bruce Schneier. Lembro, a propósito desse assunto, de um texto seu que diz que sistemas informáticos precisam "falhar bem". É tolice pensar que não vão falhar, então o foco de atenções deve ser o que fazer para evitar ou minimizar os problemas causados quando eles falharem (e não se falharem... porque vão falhar um dia!).

O Estado brasileiro como um todo vem introduzindo soluções informáticas várias, que sem dúvida representam um avanço desejável, mas que deixam no ar muitas preocupações dessa natureza. Especialmente porque não há muita transparência sobre como as coisas são feitas, deixando dúvidas de várias ordens, dentre as quais sobre sua segurança contra falhas.

Segurança, é bom dizer, é um problema muito mais amplo do que apenas lidar com falhas decorrentes de acidentes ou eventos involuntários.  Mas, mesmo quanto a apenas esse primeiro aspecto, desconsiderando portanto os problemas gerados por ataques voluntários (de crackers), há muitas coisas que podem dar errado quando o Poder Judiciário resolve de chofre que todos os processos judiciais estarão online e apenas por canais informáticos será possível se manifestar ou consultar os autos.

Reitero, mais uma vez, este meu velho discurso aqui no blog por conta de um "incidente" recente ocorrido na Prefeitura de São Paulo, amplamente divulgado na imprensa. Pois a Prefeitura desta grande Cidade resolveu informatizar a aprovação de licenças para construções e... o sistema falhou gravemente, a ponto de somente duas autorizações terem sido concedidas ao longo dos seis meses de uso do "sistema". Tiveram que voltar ao modus operandi anterior... em papel!

Aqui em São Paulo, o Poder Judiciário, que eu saiba, já passou ao menos uma vez por essa má experiência. Há alguns anos, a Justiça Federal de São Paulo teve seus dados travados em uma tentativa de migração para um sistema novo e o trem parou no meio do caminho. Nem conseguiam usar o novo sistema, nem voltar para o velho. Com isso, a JF ficou alguns meses sem conseguir distribuir novos feitos, diante da impossibilidade de cadastrá-los em algum sistema. Casos urgentes eram autorizados pelo Juiz Diretor do Fórum e a distribuição aleatória foi feita sabe-se lá como (possivelmente com o retorno das "bolinhas de bingo"). Os processos de rito comum, sem pedidos urgentes, ficaram nas prateleiras, sem distribuição, até que a situação fosse normalizada.

E isso foi fruto apenas de uma falha interna ao sistema judicial.

Quando se fala em informatização judicial, estamos tratando de um sistema que "recebe" usuários externos à máquina pública, que dele fazem uso a partir de redes externas, de todos os locais do país. Não há limites sobre o que possa dar errado em um cenário como esse, não apenas nos sistemas judiciais propriamente ditos, mas na infraestrutura da Internet em geral, ou na localidade onde está o escritório de advocacia (falta de energia elétrica em um bairro ou cidade, por exemplo). Ou problemas no sistema operacional nos computadores do advogado, para falarmos de mais um fato recente e totalmente involuntário. Não me parece justo que alguém perca seus direitos, ou seja condenado como réu revel, porque o Windows 7 (ou outro sistema qualquer que venha a falhar no futuro) de seu advogado resolveu fazer greve no dia de protocolar uma manifestação importante no processo.

Uma falha na Prefeitura engessou parte da economia paulistana, o que já é grave. Uma falha de mesma grandeza nos sistemas informáticos dos tribunais poderá neutralizar um dos Poderes do Estado por tempo indeterminado; ou, parcial o problema, poderá significar prejuízos incalculáveis ao acesso à justiça, ou ao direito material de alguma das partes, caso a falha provoque revelia ou preclusão de algum ato importante do processo.

Não estou, é claro, dizendo que a Justiça não deve se informatizar. Como deixei claro na abertura de meu recente livro - originalmente apresentado em 2010 como tese de livre docência, defendida no ano seguinte - a questão não é se devemos ou não informatizar a Justiça. O problema está em como informatizar. E como regular, normativamente, essa informatização.

Quando se discute essas questões, parte dos responsáveis pela informatização judicial parece simplesmente acreditar em resposta afirmativa à pergunta feita no título. Digo isso porque não se sabe que tipo de salvaguardas existem para que os sistemas judiciais possam "falhar bem" (também processualmente falando). Parece não haver nenhuma... Falo aqui, por ora, de salvaguardas tecnológicas apenas, porque salvaguardas legais, normativas (i.é., regras processuais claras que deem uma solução justa para tais incidentes) eu já sei que inexistem, pois nossa Lei nº 11.419/2006, que regula o chamado "processo eletrônico", é de uma precariedade normativa acachapante.

Além de maior clareza na segurança tecnológica empregada, com a manutenção de canais alternativos de oferecimento de manifestação pela parte, falta-nos regras mais claras sobre restituição de prazos e, até mesmo, um novo olhar sobre prazos e preclusões, evitando tranformar esses eventos em mais questões processuais e, consequentemente, mais recursos. Ou em mais injustiça.

Por exemplo, em caso de perda do prazo regular, por que não impor uma pequena multa - de valor simbólico, apenas para custear o canal alternativo a ser utilizado ou para inibir o uso em escala dessa faculdade - que permita à parte oferecer sua manifestação em até um ou dois dias seguintes, sem precisarmos discutir se houve ou não justa causa? Em a havendo, claro, o valor seria devolvido prontamente!

Enfrentei essa questão no meu citado estudo, inspirado na lei portuguesa que prevê tais multas, e me parece ser uma boa alternativa para contornar os muitos problemas que a informatização certamente vai trazer. A não ser que nosso amor pelas preclusões (e por limpar as mesas dos tribunais sem precisar julgar a lide...) seja maior do que nosso ideal de fazer justiça no caso concreto...

Queremos um processo que julgue o direito material que as partes têm, ou que decida a lide em função de eventos processuais (ou informáticos) puramente aleatórios?

segunda-feira, 25 de março de 2013

Será o fim do papel? (3ª parte - FINAL)


No segundo texto desta série, argumentei que o papel sobrevive nos jornais e revistas de notícias, bem como nos livros, tão somente pela falta de um modelo de negócio viável. Jornais e revistas estão em passo mais adiantado na migração para um novo ambiente totalmente digital, pois o livro em papel encerra outras dificuldades práticas: a preocupação com a proteção do conteúdo autoral contra reprodução indevida é muito mais crítica do que a dos noticiosos.
Por outro lado, a tecnologia desenvolvida para impedir a cópia ilegal do livro digital (conhecida pela sigla DRM) costuma tornar o produto desinteressante ao leitor, por ser demasiadamente restritiva.
Além dos exemplos que dei no post anterior, acrescento que, há mais de uma década, tive uma má experiência nesse sentido, quando comprei um conhecido dicionário em formato digital.
O uso do dicionário eletrônico, sem dúvida, proporcionava uma experiência muitíssimo mais rica do que a da versão em papel, dadas as múltiplas formas de pesquisa que eram oferecidas. Minha alegria acabou quando fiz upgrade do meu sistema operacional, pois o dicionário já não era compatível com a nova versão, justamente por causa da DRM nele implementada. Foi, então, lançada em seguida uma nova versão do dicionário, compatível com a versão mais atual do sistema operacional. Bem... sendo assim, fiz contato com a editora e perguntei se teria direito a um upgrade, a preços reduzidos, já que havia comprado a versão anterior, agora obsoleta. E a resposta foi negativa. Se quisesse continuar a utilizar o dicionário eletrônico no novo sistema operacional, a única opção seria pagar novamente o seu preço integral, adquirindo o novo produto (o que eu reincidentemente fiz... e viria mais tarde a perder o uso dele quando passei a usar sistemas Linux).
Ora, pensei então, o dicionário em papel – que à época era mais barato do que o software – ainda estaria disponível na minha estante...
Com o avao da Internet, no entanto, novas opções surgiram para o oferecimento de livros digitais, criando um ambiente adequado ao desenvolvimento de produtos mais aceitáveis do que um software que fique vinculado a um único computador, ou a uma determinada versão de sistema operacional.
Surgiram nos últimos anos inicialmente apenas no mercado externo, mas aos poucos aportando no Brasil algumas novidades bem interessantes: a venda de exemplares digitais, com proteção ao conteúdo obtida mediante o uso de dispositivos específicos de leitura, os e-readers, ou leitores eletrônicos.
E tal modelo, fortemente calcado nas possibilidades trazidas pela Internet, parece ser algo muito mais palatável do ponto de vista do leitor, pois praticamente simula algumas das práticas que o livro em papel permitiria a ele.
A vertiginosa queda do custo de produção de computadores portáteis (basta lembrar que um notebook básico custava mais de 5 mil reais há cerca de seis anos) é o que permitiu a criação desse novo modelo. Um aparelho eletrônico de leitura, capaz de armazenar milhares de volumes, já é vendido a preços comparáveis aos de um livro um pouco mais caro.
Assim, basta comprar um pequeno aparelho, dotado de conexão à Internet, e nele ler os livros adquiridos nas lojas virtuais. Há razoável concorrência entre algumas grandes empresas que adentraram este mercado de livros digitais, cada qual com seu aparelhinho: a Amazon, maior livraria virtual do mundo, com o pioneiro Kindle, lançado no mercado norte-americano em 2007, e que em dezembro do ano passado finalmente chegou ao Brasil; a Barnes & Noble, outro livreiro gigante, lançou o Nook; há o canadense Kobo, também recém chegado ao mercado brasileiro com a oferta de obras nacionais em parceria com a Livraria Cultura; a Sony lançou o Reader; e ainda existem o JetBook e o Pocketbook; a gigante empresa de Internet, Google, por sua vez, oferece livros digitais na sua loja Google Play, que podem ser lidos em dispositivos com o seu sistema Android, ou em um computador PC, usando o navegador.
Não adquiri, claro, esses aparelhos todos, mas até onde pude me informar há entre eles um modelo de negócio bastante semelhante. O que falo a seguir é fruto de minha experiência específica com o Google Play e, mais profundamente, com o Kindle, da Amazon, mas creio que em linhas gerais se aplique aos demais.
Os livros adquiridos ficam na “nuvem” (tradução do termo inglês “cloud”, terminologia do mundo da informática que tem sido empregada para designar o armazenamento de dados ou o oferecimento de aplicativos editores de texto, por exemplo – que ficam hospedados em servidores de Internet e podem ser utilizados pelo cliente a partir de qualquer computador a ela conectado). Isto é, os livros ficam armazenados em uma conta pessoal mantida nos computadores da livraria virtual e podem ser baixados quando necessário para seus aparelhos eletrônicos de leitura, ou eventualmente para o próprio PC, mediante o uso de softwares específicos de leitura e gerenciamento de sua moderna “biblioteca”.
Com isso, há um certo controle a evitar a contrafação das obras (o arquivo baixado está protegido com tecnologias DRM), mas ao mesmo tempo oferece-se ao comprador um padrão de uso mais próximo daquele do livro em papel.
A Amazon, por exemplo, permite vincular até sete dispositivos a uma mesma conta do usuário, que pode por si, mediante acesso ao sistema de gerenciamento disponível pelo site, desconectar ou conectar aparelhos. Isso significa dizer que, ao comprar um livro, poderei lê-lo tanto no meu Kindle como em meu PC doméstico, ou no do escritório, ou, ainda, em um outro Kindle de minha esposa ou de meus filhos. Ora, se tenho dez livros na estante e pego um deles para ler, minha família não estaria impedida de ler os outros nove... Então, se comprei vários livros eletrônicos, enquanto leio um no meu Kindle, os meus filhos podem simultaneamente ler outros nos seus próprios dispositivos, ou no PC.
Além disso, o que me pareceu bastante convidativo, os livros também podem ser lidos em outros dispositivos móveis, pois há aplicativos de leitura gratuitos para os sistemas operacionais da Apple (para iPhone ou iPad) ou para os sistemas Android, presentes em diversas marcas de tablets ou celulares. Noutras palavras, para ler edições Kindle, nem sequer é necessário adquirir um aparelho Kindle!
Ou, ainda, em um desktop ou notebook padrão também é possível ler os livros, usando um aplicativo para PC (disponível para Windows ou Mac), ou simplesmente usando seu navegador (o que permite a leitura também em plataforma Linux!) por meio do link http://read.amazon.com e entrando no sistema com seu login e sua senha.
Outra interessante comparação: em uma livraria, é comum tirarmos livros da estante, folheá-los, ler pedacinhos do texto, ou examinarmos o índice. Se interessar, compramos. Também isso é possível nesse novo modelo eletrônico, só que remotamente: dá para pedir uma amostra grátis, que apresenta apenas uma parte inicial do livro, que é do mesmo modo instalada nos leitores eletrônicos. Podemos, então, conhecer um pouco mais a obra, antes de decidir se vale a pena comprá-la.
Parece-me, então, que tais modelos de venda são bastante razoáveis, porque não inibem o leitor de fazer um fair use dos livros pelos quais pagou, de modo muito próximo do que faria se tivesse adquirido livros físicos.
Há, no entanto, quem diga que não há experiência melhor do que ler um livro em papel. É mais agradável aos olhos. É bom folheá-lo, senti-lo... alguns românticos dizem gostar até do cheiro do papel (certamente não devem saber o que é ser alérgico à poeira...). O que posso retrucar, em resposta a essas pessoas? Nada! Argumentos racionais são passíveis de discussão; paixões ou gostos pessoais, não.
Pois eu já estou tão viciado em bugigangas eletrônicas, que prefiro ler nas telinhas (ou nas grandes, dos desktops) tudo o que for possível: documentos que clientes me enviam por e-mail, monografias de alunos (há anos que não recebo textos em papel de meus orientados, e lhes devolvo minhas obervações também em formato digital, eliminando impressões), minhas próprias petições judiciais, jurisprudência, notícias... e, nos últimos dias, estou lendo livros nas plataformas que mencionei aqui. Aos recalcitrantes acreditem! o papel não é tão melhor assim de ler, isso é só uma questão de costume. Costume esse que as novas gerações estão modificando sem pestanejar.
Nos últimos anos, tenho notado o crescente número de alunos que comparecem às aulas não com Códigos, nem carregando um pesado Vade Mecum, mas com notebooks e, mais recentemente, com tablets ou telefones celulares. Em tese, pode-se levar a legislação inteira do país em um moderno smartphone. E também usam os aparelhos para fazer anotações de aula. O caderno, para parte dessa nova geração, já acabou!
Da soma desses fatores (diria eu, especialmente porque o modelo é justo para com o leitor!), as vendas de livros eletrônicos têm atingido surpreendentes estatísticas. Segundo foi noticiado em janeiro de 2011, desde os três últimos meses de 2010 a Amazon norte-americana passou a vender mais livros digitais do que em papel. O Kindle foi lançado em 2007; bastaram, portanto, três anos para as edições eletrônicas superarem as vendas dos livros tradicionais. E isso se repetiu em seguida na filial do Reino Unido, onde o Kindle foi lançado em outubro de 2009: em meados de 2012, as vendas em formato digital superaram a dos livros físicos.
Vencido o desinteresse dos leitores, e criado um modelo de negócio viável para todas as partes envolvidas, ouso dizer mais uma vez que em todos os demais aspectos o formato eletrônico supera largamente o tradicional, desde os argumentos, digamos, “ecológicos”, relacionados à produção, transporte e descarte final do papel, como os relacionados à eficiência do modelo. Assim que comprarem um livro pela Internet, de sua casa ou escritório, a qualquer hora do dia ou da noite e, segundos depois, puderem vê-lo presente no seu mágico aparelhinho de leitura, entenderão do que estou falando.
E, do ponto de vista do autor, a publicação em livros eletrônicos reduz drasticamente o tempo de espera para que sua obra atinja o público, pois a velocidade obtida no universo dos bits é, nesse aspecto, algo insuperável: em tese, pronto e enviado o arquivo final, o livro poderá estar disponível à venda quase que imediatamente, em todo o mundo.
Encerro aqui esta sequência de três pequenos textos. Não foi meu objetivo convencer ninguém das vantagens deste ou daquele outro modelo, mas sim apresentar-lhes as informações que obtive e consequentes reflexões que desenvolvi nas últimas semanas, em que resolvi “brincar” um pouco com as opções de livro digital e ver como as coisas se encontram atualmente neste campo.
Posso ao menos dizer que, a mim, a elaboração e divulgação desses três pequenos textos serviram para discutir o assunto, seja on line ou pessoalmente, com meus relacionamentos profissionais e de amizade, o que foi importante para, juntamente com o material que levantei, ajudar na formação de minhas ideias sobre o assunto e na tomada de algumas decisões pessoais.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Será o fim do papel? (2ª Parte)


Terminei o post anterior com a afirmação de que há um campo em que o papel ainda parece resistir bravamente: a publicação de livros. E deixei a pergunta final: continuaremos a ler livros em papel?
Diferentemente do setor jornalístico, que, como se sabe, obtém receita pela publicidade, publicações autorais dependem da venda de exemplares.
Para o modelo de negócios do setor jornalístico, portanto, parece mais fácil encontrar guarida na Internet ou em outros formatos digitais. Isso porque a preocupação com a proteção do conteúdo não é algo tão relevante. Afinal, notícias ficam velhas logo. Ser capaz de vender jornais e revistas é importante para que o anunciante saiba qual o público que conseguirá atingir com a propaganda neles veiculada. Nos dias seguintes, aquele material todo não tem muito valor para a empresa de notícias (como também para o leitor!): a receita virá dos anúncios feitos nas edições seguintes.
No ambiente literário, entretanto, as coisas são diferentes. Autores, seus editores e o restante da cadeia econômica, que inclui distribuidores e livrarias, são remunerados pela venda dos exemplares dos livros, que, por sua vez, são produtos de utilidade muito mais duradoura do que jornais.
De certo modo, assim como para o mundo das notícias, o livro em papel ainda não morreu por dois motivos: o hábito inercial dos leitores e a falta de um modelo de negócio sustentável. Igualmente, se pensada apenas a eficiência da distribuição (como me referi no post anterior), o papel será surrado pelo meio eletrônico.
Por várias vezes na última década, no ambiente acadêmico, sustentei entre meus pares que já não havia sentido publicar revistas científicas em papel, a menos que houvesse ali alguma finalidade econômica. Instituições de ensino que apenas desejam divulgar sua produção científica – e invariavelmente costumam distribuir de graça, ou a preço de custo, os seus periódicos – não têm qualquer razão para continuar a publicar revistas em papel. A Internet permite reduzir o custo da publicação e ao mesmo tempo atingir um universo ilimitado de leitores, que podem localizar os artigos a partir das populares ferramentas de busca, vantagens que a restrita edição em papel jamais proporcionaria.
Quando, porém, a publicação de um livro ou revista de artigos é motivada por interesses também econômicos, tanto de seu autor como do restante da cadeia econômica correlata, o meio digital ainda parece ser um assustador pântano de dificuldades práticas.
O problema da migração para o livro digital reside na facilidade de replicação dos arquivos gerados nesse formato. O papel atua, no caso dos livros, não apenas como um mero suporte para transmissão da palavra: é também uma forma de controle e proteção sobre o produto econômico. Além, claro, da proteção legal aos direitos autorais, a reprodução ilícita de um livro sempre enfrentou outros óbices práticos que ajudavam a inibi-la: o custo da fotocópia em papel e a pior qualidade do resultado final. Melhor pagar por um livro do que por uma horrível resma de papel borrado e torto...
cerca de vinte anos, quando gravadores de CDs tinham custos proibitivos (se minha memória não me trai, quando foram lançados no Brasil custavam mais de 2 mil dólares) e os também caros discos rígidos dos computadores pessoais tinham capacidade em torno de uns 100 Mb (menos de um sexto da capacidade de um CD), a publicação de revistas de jurisprudência em CD-ROM pareceu ser um porto seguro para o editor. Lembro-me de ter adquirido duas ou três revistas neste formato, que já apresentavam largas vantagens sobre o papel, especialmente por não ocuparem prateleiras inteiras: uma centena de revistas do STJ cabia num pequeno disco de plástico! Claro, nos dias de hoje a distribuição de livros em um CD comum não representa qualquer proteção física para o editor.
Surgiram então, as tecnologias DRM (Digital Rights Management, ou Gerenciamento Digital de Direitos): técnicas que procuram impedir a duplicação de conteúdo digital. São tecnologias controvertidas, que enfrentam vigorosa oposição. Mas, à parte esta questão de cunho mais propriamente político, sem dúvida parece ser necessário encontrar um ponto de equilíbrio na proteção autoral de conteúdo digital.
O problema prático de algumas tecnologias DRM, especialmente as primeiras que surgiram, é que elas tornavam o livro digital um produto muito menos desejável do que o livro em papel. Apoiando-me apenas no que minha lembrança permitir (nem faço ideia de como recuperar essas informações perdidas no tempo, senão pela minha memória e a dos amigos leitores que quiserem colaborar...), recordo-me de ter visto ao longo dos anos alguns produtos com proteções tão complexas e restritivas que não despertei por eles o mesmo interesse que tive, por exemplo, em comprar a Revista do STJ em CDs, em meados dos anos 90.
Via de regra, os produtos eram registrados com códigos que os vinculavam a especificações de hardware de um determinado computador. Lembro-me até de um produto – só não consigo rememorar qual foi – que ainda vinha acompanhado de um pequeno aparelho a ser conectado na porta serial (ou seria na porta paralela?) do computador. O problema é que tais mecanismos não só impediam o uso do produto em outro computador também seu, como ainda causariam problemas quando da substituição ou manutenção daquele computador em que os livros ou revistas foram instalados. Se fosse necessário substituir o disco rígido, por exemplo, isso invalidaria o produto instalado... Um livro em papel, convenhamos, nos oferecia maiores possibilidades de uso.
Eram tempos pré-Internet...
A popularização da Internet e, especialmente, a sua constante melhoria de qualidade e velocidade da conexão, aliada à proliferação de dispositivos móveis capazes de acessá-la, parece abrir finalmente um campo promissor para modelos de negócio que consigam contrabalancear de modo mais equânime os dois interesses em jogo: a proteção do conteúdo e os direitos do leitor que adquiriu justamente um exemplar da obra. Sem isso, não haverá produtos viáveis, seja porque os leitores não se interessarão por eles, seja porque ficará comprometida a receita do autor.
A tecnologia tem buscado novos caminhos. Retomei meu interesse pelo tema neste início do ano de 2013 e tentei conhecer um pouco mais as novas opções disponíveis.
Estou tentado a afirmar que o livro em papel começou a morrer.
Continuo no próximo post.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Será o fim do papel?

De alguma forma, tenho feito esta pergunta a mim mesmo ao longo dos últimos 15 anos, desde que escrevi o artigo “O documento eletrônico como meio de prova” (que, aliás, foi originalmente publicado on line em 1998; somente em 1999, uma versão com ligeiros acréscimos seria publicada em papel na Revista de Direito Imobiliário).
Desde então, meu principal interesse acerca desse assunto sempre orbitou em torno de seus aspectos jurídicos: papéis que servem como instrumentos, ou como prova de atos e fatos jurídicos, poderiam ser substituídos por arquivos de computador? Ou, ainda, autos judiciais poderiam ser digitais? Estes novos fenômenos estão hoje nos alcançando, embora eu ainda considere que esta seja a fronteira mais difícil para a utilização dos meios digitais no lugar do velho papel, especialmente diante das muitas questões culturais ou ligadas à segurança estas nem sempre bem compreendidas que estão envolvidas nessa mudança. Mas já escrevi longas linhas sobre esse assunto e não é minha intenção, neste breve texto, resumir todos os aspectos envolvidos.
Ocorre que, por vezes, aquele esforço com que este advogado e professor de Direito Processual tenta abordar assuntos técnico-jurídicos ligados à Informática cede espaço às tentadoras especulações sobre aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais desta nossa nova sociedade da informação, temas diante dos quais eu talvez não seja mais do que um simples curioso. Nada como escrever em um blog, para podermos externar as nossas mais despreocupadas reflexões!
Como depois ressaltei em escritos posteriores, o fenômeno que prefiro chamar de “substituição do papel” é anterior ao desenvolvimento da Informática e ao aparecimento da Internet. Suportes físicos de fácil mobilidade como o papel e seus antecessores, o papiro e o pergaminho, foram por milênios o mais eficiente meio de fixar e transmitir a informação. Com o avanço tecnológico dos últimos dois séculos, o papel começou a ser substituído por meios intangíveis de transmissão da informação: vieram o telégrafo, o telefone, o rádio e a TV.
A correspondência epistolar e os jornais noticiosos começaram, então, a enfrentar a concorrência desses novos meios, que se afirmaram amplamente em nossa sociedade moderna. O uso de cartas na comunicação interpessoal perdeu sua primazia para o telefone. Mas o papel não desapareceu. Como veículo de notícias, mesmo diante dos seus novos concorrentes, encontrou seu espaço ao lado do rádio e da TV. Se estas levaram vantagem pelo imediatismo e pelo impacto que causam a voz falada e as imagens em movimento, as palavras escritas de jornais e revistas ainda resistiram pelo oferecimento de maior profundidade, pela sua portabilidade e, também, pela longevidade da fixação da informação, que pode ser arquivada para futura releitura.
Mas aí chegou a Internet...
Todos os veículos de notícia foram aos poucos criando as suas versões on line. Creio que não haja um só noticioso, seja da imprensa escrita ou falada, que hoje já não esteja presente na Grande Rede, ainda que nem sempre apresentando versões integrais de suas notícias.
Jornais e revistas em papel continuarão a existir?
Tomei uma posição pessoal e definitiva sobre essa pergunta há uns dois anos. Um erro da operadora de cartão de crédito, ou da própria própria empresa jornalística – nunca soube bem ao certo o que sucedeu – fez com que minha assinatura de jornal fosse acidentalmente cancelada. Lia esse jornal desde a infância, pois meu pai já o assinava. Adulto, segui com o hábito.
Certo dia, porém, sentindo falta do jornal, telefonei para o atendimento ao assinante, para perguntar o que tinha acontecido. E ouvi em resposta que o corte ocorrera havia quatro meses, por falta de pagamento! Por um instante, ainda ao telefone, fiquei mudo; em seguida, refletindo melhor, notei que deveria fazer muito mais de quatro meses que eu já não lia notícias no exemplar em papel... Ele provavelmente só era usado para embrulhar o lixo, se tanto. Perguntei apenas se eu devia algo e decidi deixar as coisas como estavam.
Sob todos os aspectos relacionados à eficiência, no mundo da notícia não há concorrência possível do papel com os meios digitais. O papel perde em todos eles. A Internet é ainda mais ágil e instantânea do que o rádio e a TV; dispensável se mostra compará-la com exemplares diários ou semanais. Jornais on line tornaram-se portáveis como o papel, diante da “onda” dos telefones celulares, tablets ou outros dispositivos móveis existentes ou a inventar. O jornal em papel precisa ser transportado até a cidade do leitor, enquanto a Internet está em praticamente todo o planeta. E é possível, se necessário, dar mais profundidade ao texto do que em publicações em papel, pois veículos digitais não sofrem restrições de espaço para encaixar a matéria na apertada diagramação.
Jornais e revistas em papel ainda não acabaram por dois motivos. O primeiro deles é que há leitores inerciais (por mero hábito romântico, ou por resistência à tecnologia) e, enquanto houver procura, haverá oferta. O outro, mais determinante, é a falta de um modelo empresarial comprovadamente sustentável para o jornal digital. De algum modo, ambos serão superados e isso é somente uma questão de tempo. Quanto ao segundo aspecto, é possível afirmar que encontrar o modelo sustentável no momento certo é o que determinará a seleção das empresas de notícias que continuarão a existir no futuro. Por enquanto, todas elas estão fazendo suas experiências e apenas flertando com o novo paradigma, na tentativa de conhecer melhor um futuro que certamente chegará.
Mas o que realmente me animou a refletir sobre a pergunta do título é notar que há um outro campo em que o papel ainda parece reinar com larga folga: o do mercado editorial.
O livro eletrônico já não é novidade, mas o papel, aqui, ainda parece resistir com tenacidade ao avanço da tecnologia.
Continuaremos ainda a ler livros em papel?
Deixo essa questão para o próximo post.

sábado, 16 de março de 2013

Dedos de silicone e a violação do INFOSEG: os limites da segurança informática.

"If you think technology can solve your security problems, then you don’t understand the problems and you don’t understand technology ("Se você pensa que a tecnologia pode resolver os seus problemas de segurança, então você não entende os problemas nem entende a tecnologia", em minha tradução livre).

Não encontro melhor maneira de iniciar este texto, senão citando, pela enésima vez (já está se tornando uma das citações que faço com mais frequência!) essa frase de Bruce Schneier. Os gestores de informática (especialmente do setor público de nosso país) e nossos legisladores deveriam mandar enquadrá-la e pendurá-la na parede de seus gabinetes. Ou repeti-la, como um mantra, todas as manhãs, durante o café.

As notícias publicadas nos últimos dias, como salientei no título deste post, são mais dois exemplos do inegável acerto da mensagem de Schneier, que se somam aos muitos e muitos exemplos de outras ocorrências do nosso passado recente (e isso é tema recorrente aqui no blog, como tratado neste texto de 2010 cuja leitura lhes indico).

O uso de dedos de silicone por uma médica do SAMU para marcar o ponto de colegas ausentes foi até motivo de piadas e charges nas redes sociais, de tão burlesca que foi a fraude. O uso da biometria costuma inspirar nos desavisados uma falsa sensação de segurança. Não que a biometria não seja uma tecnologia interessante... O problema é que a biometria não é uma panacéia geral, algo que possa ser usado em quaisquer circunstâncias e para quaisquer fins, e isoladamente de outros mecanismos de proteção e repressão. O uso remoto de identificação biométrica, por redes como a Internet, por exemplo, é algo que beira a tolice.

Mesmo em ambientes adequados, em que a identificação biométrica é feita presencialmente, ainda assim esta técnica não é nada mais do que um dos elos de uma corrente de segurança. A biometria por impressões digitais (que o TSE também começou a utilizar) já foi comprovadamente violada por "atalhos" como esse, utilizado pela médica do SAMU. O que o fato traz de "novidade", é que os meios de executar esta fraude já estão largamente "popularizados".

Mas mesmo que o ponto eletrônico utilizasse outros elementos biométricos mais difíceis de simular com objetos inanimados (mapeamento de vasos sanguíneos ou da retina, por exemplo), de nada adiantaria a mais moderna tecnologia se, à falta de outros controles, o funcionário puder, por exemplo, "bater o ponto" e voltar para casa. A tecnologia só lhe causaria o desconforto de ir até lá. Ou se o restante do sistema, a base de dados gerada, ou a resposta (esta necessariamente uma tarefa humana) a esses dados não forem eficientes, o ponto biométrico será inútil...

A outra má notícia (o link aponta para a primeira da série de matérias diárias produzidas nesta semana que passou, pelo SBT) retrata o lado perverso da formação de bases de dados com cadastros populacionais. Pode-se dizer que alguns têm (e creio que não seja apenas no Brasil) uma verdadeira tara por cadastrar a tudo e a todos, como se a formação de imensas bases de dados pessoais fossem servir, por si só, para propiciar alguma segurança. E como se não pudessem também ser usadas para o mal.

Aliás, desconfio que seu potencial uso para o mal é algo que tende a superar a sua finalidade desejável. Não é à toa que os limites à formação de cadastros populacionais são objeto de rigorosa legislação nos países da Europa. As más experiências do Velho Continente devem tê-lo levado a isso.

Pois a citada reportagem aponta que crackers estão vendendo, por 2 mil reais, senhas de acesso ao sistema INFOSEG, um megacadastro populacional do Ministério da Justiça, criado com o objetivo de combater a criminalidade. Criminosos compram esse acesso e usam os dados para praticar dezenas de golpes variados, de falsa abertura de contas bancárias a "esquentar" veículos roubados com dados verdadeiros. É um escândalo (digo, para padrões civilizados, pois aqui no Brasil já nada mais escandaliza...)!

Pelos detalhes divulgados no jornal televisivo, não apenas as senhas foram fornecidas, mas o cracker também logrou instalar alguma espécie de módulo de segurança no computador dos jornalistas que conduziam a reportagem. Possivelmente, usou-se desse recurso no sistema INFOSEG para impedir que computadores estranhos aos órgãos de segurança pudessem acessar os dados (não se deu mais detalhes, mas arriscaria dizer que deve ser algo como um desses "módulos de segurança" em javascript usados em internet banking).

Como se vê, a tecnologia não foi capaz de impedir um cracker (seria mesmo um invasor de sistemas ou um criminoso interno ao INFOSEG?) de conseguir algumas senhas e de levar para casa todos os módulos de segurança que deveriam restringir o acesso indevido ao sistema (mais uma salva de palmas a Schneier!).

O que realmente causa espécie, como já salientado neste outro post aqui do blog, é como se pode distribuir amplamente as senhas de um sistema como esse, que guarda dados sensíveis de toda a população. Os jornalistas apuraram que a senha "vendida" pertencia, ou deveria pertencer, a um Policial Militar de Alagoas. Parece muito óbvio que, independentemente de falhas ou de ataques externos, um sigilo compartilhado entre milhares de pessoas já não é mais um segredo.