sábado, 4 de maio de 2013

Só os sistemas informáticos judiciários são imunes a falhas?

Adianto que a resposta à pergunta do título é óbvia: é claro que não!

Nenhum sistema informático é imune a falhas. Meu guru predileto nessa área - e creio que seja o de todos que se interessam pelo tema - é Bruce Schneier. Lembro, a propósito desse assunto, de um texto seu que diz que sistemas informáticos precisam "falhar bem". É tolice pensar que não vão falhar, então o foco de atenções deve ser o que fazer para evitar ou minimizar os problemas causados quando eles falharem (e não se falharem... porque vão falhar um dia!).

O Estado brasileiro como um todo vem introduzindo soluções informáticas várias, que sem dúvida representam um avanço desejável, mas que deixam no ar muitas preocupações dessa natureza. Especialmente porque não há muita transparência sobre como as coisas são feitas, deixando dúvidas de várias ordens, dentre as quais sobre sua segurança contra falhas.

Segurança, é bom dizer, é um problema muito mais amplo do que apenas lidar com falhas decorrentes de acidentes ou eventos involuntários.  Mas, mesmo quanto a apenas esse primeiro aspecto, desconsiderando portanto os problemas gerados por ataques voluntários (de crackers), há muitas coisas que podem dar errado quando o Poder Judiciário resolve de chofre que todos os processos judiciais estarão online e apenas por canais informáticos será possível se manifestar ou consultar os autos.

Reitero, mais uma vez, este meu velho discurso aqui no blog por conta de um "incidente" recente ocorrido na Prefeitura de São Paulo, amplamente divulgado na imprensa. Pois a Prefeitura desta grande Cidade resolveu informatizar a aprovação de licenças para construções e... o sistema falhou gravemente, a ponto de somente duas autorizações terem sido concedidas ao longo dos seis meses de uso do "sistema". Tiveram que voltar ao modus operandi anterior... em papel!

Aqui em São Paulo, o Poder Judiciário, que eu saiba, já passou ao menos uma vez por essa má experiência. Há alguns anos, a Justiça Federal de São Paulo teve seus dados travados em uma tentativa de migração para um sistema novo e o trem parou no meio do caminho. Nem conseguiam usar o novo sistema, nem voltar para o velho. Com isso, a JF ficou alguns meses sem conseguir distribuir novos feitos, diante da impossibilidade de cadastrá-los em algum sistema. Casos urgentes eram autorizados pelo Juiz Diretor do Fórum e a distribuição aleatória foi feita sabe-se lá como (possivelmente com o retorno das "bolinhas de bingo"). Os processos de rito comum, sem pedidos urgentes, ficaram nas prateleiras, sem distribuição, até que a situação fosse normalizada.

E isso foi fruto apenas de uma falha interna ao sistema judicial.

Quando se fala em informatização judicial, estamos tratando de um sistema que "recebe" usuários externos à máquina pública, que dele fazem uso a partir de redes externas, de todos os locais do país. Não há limites sobre o que possa dar errado em um cenário como esse, não apenas nos sistemas judiciais propriamente ditos, mas na infraestrutura da Internet em geral, ou na localidade onde está o escritório de advocacia (falta de energia elétrica em um bairro ou cidade, por exemplo). Ou problemas no sistema operacional nos computadores do advogado, para falarmos de mais um fato recente e totalmente involuntário. Não me parece justo que alguém perca seus direitos, ou seja condenado como réu revel, porque o Windows 7 (ou outro sistema qualquer que venha a falhar no futuro) de seu advogado resolveu fazer greve no dia de protocolar uma manifestação importante no processo.

Uma falha na Prefeitura engessou parte da economia paulistana, o que já é grave. Uma falha de mesma grandeza nos sistemas informáticos dos tribunais poderá neutralizar um dos Poderes do Estado por tempo indeterminado; ou, parcial o problema, poderá significar prejuízos incalculáveis ao acesso à justiça, ou ao direito material de alguma das partes, caso a falha provoque revelia ou preclusão de algum ato importante do processo.

Não estou, é claro, dizendo que a Justiça não deve se informatizar. Como deixei claro na abertura de meu recente livro - originalmente apresentado em 2010 como tese de livre docência, defendida no ano seguinte - a questão não é se devemos ou não informatizar a Justiça. O problema está em como informatizar. E como regular, normativamente, essa informatização.

Quando se discute essas questões, parte dos responsáveis pela informatização judicial parece simplesmente acreditar em resposta afirmativa à pergunta feita no título. Digo isso porque não se sabe que tipo de salvaguardas existem para que os sistemas judiciais possam "falhar bem" (também processualmente falando). Parece não haver nenhuma... Falo aqui, por ora, de salvaguardas tecnológicas apenas, porque salvaguardas legais, normativas (i.é., regras processuais claras que deem uma solução justa para tais incidentes) eu já sei que inexistem, pois nossa Lei nº 11.419/2006, que regula o chamado "processo eletrônico", é de uma precariedade normativa acachapante.

Além de maior clareza na segurança tecnológica empregada, com a manutenção de canais alternativos de oferecimento de manifestação pela parte, falta-nos regras mais claras sobre restituição de prazos e, até mesmo, um novo olhar sobre prazos e preclusões, evitando tranformar esses eventos em mais questões processuais e, consequentemente, mais recursos. Ou em mais injustiça.

Por exemplo, em caso de perda do prazo regular, por que não impor uma pequena multa - de valor simbólico, apenas para custear o canal alternativo a ser utilizado ou para inibir o uso em escala dessa faculdade - que permita à parte oferecer sua manifestação em até um ou dois dias seguintes, sem precisarmos discutir se houve ou não justa causa? Em a havendo, claro, o valor seria devolvido prontamente!

Enfrentei essa questão no meu citado estudo, inspirado na lei portuguesa que prevê tais multas, e me parece ser uma boa alternativa para contornar os muitos problemas que a informatização certamente vai trazer. A não ser que nosso amor pelas preclusões (e por limpar as mesas dos tribunais sem precisar julgar a lide...) seja maior do que nosso ideal de fazer justiça no caso concreto...

Queremos um processo que julgue o direito material que as partes têm, ou que decida a lide em função de eventos processuais (ou informáticos) puramente aleatórios?