sábado, 19 de abril de 2014

Marco Civil da Internet: o que significa neutralidade da rede e por que isso é importante?


A Câmara dos Deputados aprovou recentemente o projeto de lei que cria o chamado "Marco Civil da Internet", que no momento aguarda apreciação no Senado. A ideia original do projeto era servir como uma espécie de declaração de direitos na Internet. Pensou-se em fazer um certo contraponto com a tendência, então saliente, de sobrevalorizar os aspectos negativos e a prática de delitos por meio de computadores, como se a grande rede fosse um novo faroeste a precisar de um xerife durão. Ou seja, antes de criminalizar comportamentos ou proibir, proibir e proibir, deveríamos definir direitos e liberdades.

Para ser sincero, o Marco Civil, como consta do texto final do projeto aprovado na Câmara, não é exatamente a lei dos meus sonhos. É um texto muito prolixo e, por isso, potencialmente confuso. Mas isso fica - se o tempo permitir - para uma outra discussão. Há ao menos um tema interessante no projeto que quero aqui abordar, pois tem sido mal entendido, a ponto de suscitar críticas que beiram o incompreensível. Trata-se do chamado "princípio da neutralidade da rede".

O princípio da neutralidade da rede, em poucas palavras, propõe que tudo o que trafega na Internet deve ser tratado de modo neutro, isonômico, pelos que detêm algum poder sobre os canais de comunicação.

Observa-se inúmeros textos publicados na Web, e que via de regra são instintivamente compartilhados nas redes sociais, apontando a neutralidade da rede como uma forma de intervencionismo estatal, ou como se o governo brasileiro (que, diga-se, não foi o criador desse conceito) estivesse tentando interferir no funcionamento da grande rede.

Ora, neutralidade é uma palavra que, em si, já não parece combinar com intervencionismo estatal, mesmo porque, assegurada por lei, o próprio Estado haveria de respeitá-la, quando ele próprio também fornecer acesso, ou de qualquer modo puder interferir nos canais de comunicação que compõem a grande rede.

Evidentemente, o estudioso atento não pode descartar de pronto aquele fenômeno orwelliano de se propor belos conceitos cuja execução prática seja exatamente o seu oposto, como chamar de Ministério do Amor o órgão que realizava a tortura de inimigos do regime. Assim, é claro que princípios com nomes bonitos não devem nos contentar; importa, pois, verificar exatamente o que estabelece o texto legal que os define.

Vamos, então, à fonte primária, isto é, ao texto aprovado. Diz o art. 9º, sobre neutralidade da rede, que:

"Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização a serviços de emergência.

§2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no §1º, o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 do Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§3º Na provisão de conexão à Internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo."

Não me parece a melhor das redações para instituir a neutralidade da rede nessas terras tropicais, mas minhas críticas a esse texto, para não me alongar demais sobre essa outra questão paralela, incidiriam sobre as pouco precisas e muito prolixas ressalvas feitas nos parágrafos.

Entretanto, não é isso o que se tem criticado a respeito dessa regra, mas sim o próprio princípio em si, isto é, o que se vê definido no caput do citado artigo. Não se duvida que todos têm o direito de expressar suas críticas, mas o problema que nelas vejo é que o princípio em comento é criticado justamente pelo que ele não é: uma forma de intervencionismo estatal, ou uma interferência indevida na livre iniciativa privada.

Como exemplo desse tipo de crítica, cito o artigo cujo título e link seguem abaixo:


Sugiro que leiam todo o texto, antes de prosseguirem nestas minhas linhas.

Tentando ser didático (e como poucos entendem o que significa "pacotes de dados" e outras especificidades tecnológicas mencionadas no supra citado art. 9º), aquele autor faz comparações com outros setores da economia e traça suas analogias sobre o que a ali criticada neutralidade da rede significaria nesses outros cenários mais palpáveis à compreensão do leitor médio. Vou transcrever uma delas, que tenta estabelecer uma comparação com as rodovias:

"Primeiro exemplo: diferenciação da cobrança do pedágio por eixo ou por tamanho do veículo.

Essa é uma das formas de discriminação mais corriqueiras que existem. Nas inúmeras rodovias mundo afora transitam vários tipos de veículos de tamanhos distintos, com variados números de eixos, com diferentes quantidades de carga etc. Veja aqui um exemplo de pedágio em que as motocicletas são isentas de pagamento ao passo que veículos de passeio ou comerciais pagam uma tarifa.

Há algum defensor da neutralidade de rede que reclame de haver pedágio diferenciado por eixo do veículo ou por tamanho do veículo?"

A minha resposta a essa pergunta, sem dúvida, seria "não". É justo que veículos paguem por seus vários eixos.

O problema é que o exemplo não se encaixa bem no ambiente que está em discussão. Se quiserem comparar com rodovias, as perguntas que mais se aproximariam do universo de uma rede de computadores e do que a neutralidade da Internet representa seriam as seguintes:

a) Poderia o dono da estrada cobrar mais pedágio do caminhão de soja do que do caminhão de feijão, ambos com mesmo número de eixos e mesmo peso?

b) Poderia o dono da estrada cobrar pedágio mais elevado, em cada praça de pedágio, do caminhão de soja que vem do Mato Grosso, do que do caminhão de soja que vem de Goiás? Ou cobrar mais daquele que vai para Minas Gerais, do que o que vai para o Rio de Janeiro? (Para deixar bem claro: estou questionando o preço em cada ponto de cobrança, e não pelo trajeto total, que certamente pode variar se for mais ou menos longo).

c) Poderia o dono da estrada cobrar mais pedágio do caminhão de soja que vem da Fazenda X do que daquele que vem da Fazenda Y (digamos que esta seja dele próprio, ou de seus amigos ou parentes)?

d) Ou, em qualquer desses cenários polarizados descritos acima, poderia o dono da estrada determinar que uns desses caminhões tenham que fazer um longo "pit stop" em algum local, enquanto outros seriam prontamente liberados para seguir diretamente aos seus destinos?

e) Ou discriminar caminhões feitos pela montadora K, dando prioridade aos que usam caminhões da fabricante Z.

Que tal? Algum opositor da neutralidade da rede entende razoável dar esse poder ao dono da estrada?

Aos que defendem a livre concorrência: as safras de soja de MT e de GO deveriam concorrer pela sua qualidade e preço ou pelo poder ou influência que seus produtores possam ter sobre as estradas? Os caminhões K e Z deveriam concorrer pela robustez, confiabilidade, custo ou fácil manutenção, ou pela associação que as respectivas montadores conseguissem fazer com os donos da estrada?

Ao estabelecer que todos os pacotes de dados sejam tratados isonomicamente, isso desconcentra o poder que os canais de comunicação possam ter sobre a própria comunicação, assegurando que a Internet continue a ser o que dela se espera, isto é, uma espécie de canal público e universal de comunicação, ainda que se valha de estruturas privadas que se interconectam. Mesmo porque a Internet é o que é hoje porque é muito mais do que cabos ou ondas de rádio: há toda uma infraestrutura lógica de protocolos de uso livre e um incalculável patrimônio imaterial resultante da própria existência de uma interconexão de todos com todos, na qual todos querem se juntar. Isso não pode ser apropriado com exclusividade por ninguém, sejam empresas ou governos.

No entanto, dispensado o dever que o caput do art. 9º estabelece, coisas como as abaixo citadas poderiam acontecer:

a) José tem conexão à rede pelo provedor X. O provedor X tem uma página de notícias online chamada XA. Toda vez que José tentar ler notícias do jornal YA, concorrente de XA, os pacotes serão "filtrados" e ficarão "dormindo" alguns segundos extras, enquanto os pacotes vindos do jornal XA chegarão velozes como um raio. Como é entediante aguardar páginas lentas, José possivelmente preferirá ler as notícias que chegam rapidamente de XA.

b) Ou o provedor X pode fazer ofertas aos sites A e B (podem ser jornais, lojas online, organizações políticas, cursos à distância, qualquer tipo, enfim, de sites concorrentes): quem lhe paga mais para passar na frente os seus pacotes e deixar os do concorrente num "loop" bem demorado? Ou quanto mais B, por exemplo, estaria disposto a pagar a X para atrasar progressivamente mais os pacotes de A? Ou quem sabe bloqueá-los algumas horas do dia, alguns dias da semana, de modo a fazer com que seus potenciais visitantes dele desistam?

c) Diante de dois diferentes softwares de conexão à rede, Alfa e Beta, o provedor X poderia pedir um jabá a mais ao fabricante de Alfa, para que os pacotes que venham dele sejam priorizados, em detrimento dos pacotes enviados pelo software Beta.

Pode-se pensar que, se o provedor X faz isso com alguns sites, o provedor Y poderia fazer com outros, idem o provedor Z. Isso seria o fim da Internet como uma rede única, que permita igualmente a conexão de todos com todos. E tende à concentração de poder, o que é também avesso à ideia de livre concorrência. No limite dessa escalada de filtragens e preferências, podemos em tese chegar a um cenário de feudalização da rede, em que teríamos que pagar pedágios a diversos senhores feudais para conseguir chegar aos diferentes locais virtuais, isto é, ter que contratar várias conexões diferentes para obter acesso a serviços diversos.

Os serviços de conexão à Internet costumam ser remunerados segundo a "velocidade" da conexão (os tais Kbps ou Mbps por segundo) e pelo tráfego em volume absoluto de dados transferidos (em número de Mbytes ou Gbytes totais por mês). Isso não é proibido pelo texto aprovado na Câmara dos Deputados. Nem será proibido cobrar diferentemente o cliente segundo o horário de seu tráfego, exemplo que o artigo supra citado também utiliza para criticar o projeto. O que o projeto proíbe é cobrar mais ou menos em função do conteúdo, origem ou destino dos pacotes, tipo de serviço ou aplicativo utilizado, como nos exemplos que dei acima, bens que não são gerados nem oferecidos pelos provedores de acesso.

Enfim, a neutralidade da rede é um princípio voltado a impedir o abuso de poder e formação de cartéis ou oligopólios por parte de quem detenha os canais de comunicação por que trafegam os dados, assegurando a liberdade dos usuários de utilizar os serviços online que melhor lhes aprouverem, garantindo que nenhum desses destinos tenha sua acessibilidade artificialmente cerceada, seja por interesses econômicos ou políticos. Assegura, pois, a livre concorrência entre os serviços oferecidos por meio da rede (sites, lojas online etc).

E em nenhum momento atinge a livre concorrência entre os que proporcionam os serviços de conexão, para que estabeleçam diferentes produtos, com diferentes níveis de tráfego ou velocidade, e sejam então remunerados por aquilo que efetivamente oferecem aos respectivos clientes.

É, portanto, uma proposta libertária - se executada com fidelidade aos seus propósitos - e não totalitária, como alguns críticos têm sugerido.