Parodiei, no título acima, o conhecido ditado popular que diz que "manda quem pode, obedece quem tem juízo". Este título parece ainda mais apropriado para a realidade atual do país. A separação de poderes até hoje não se mostrou muito clara por estas bandas, o que torna o princípio da legalidade ("ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", é bom lembrar que isso está escrito no "livrinho") algo um tanto quanto extravagante.
Na ditadura passada, o Poder Executivo legislava por meio dos famigerados Decretos-lei, que eram aprovados por decurso de prazo (para os mais novos: se o Legislativo não o votasse no prazo, ele era automaticamente aprovado). A Constituição cidadã de 1988 quis varrer do mapa esse "entulho autoritário" (como chamávamos tudo aquilo que lembrasse aquele Estado de exceção) e criou em seu lugar as Medidas Provisórias, que não eram aprovadas por decurso de prazo, mas podiam ser infinitamente reeditadas (segundo interpretação que lhes foi emprestada...). Somente a partir de 2001, com a emenda constitucional que pôs fim à reedição sem fim das MPs (mas que perpetuou as que se encontravam pendentes), este instrumento tornou-se um pouco mais democrático, embora ainda me pareça que o Executivo delas muito abusa. O Executivo, pois, legisla, e muito!
Mais recentemente, com a expansão do uso de sistemas informáticos públicos, o país vem delegando funções tipicamente legislativas a órgãos dos mais variados matizes.
Em 2001, eu e meu colega deste blog, o advogado Marcos da Costa, publicamos críticas (aqui e aqui) à criação da ICP-Brasil pela Medida Provisória nº 2.200 (aliás, uma das MPs que continuam perpetuamente em vigor...). Entre vários aspectos negativos desta iniciativa do Poder Executivo Federal, apontamos que a MP 2.200 estava delegando funções legislativas a um "Comitê-gestor" formado por integrantes indicados livremente pela Presidência da República. Ao "regular" o uso de assinaturas digitais, o Comitê poderá legislar sobre os requisitos de validade de atos jurídicos de variadas naturezas ou, ainda, sobre os meios de prova. Vejam vocês que até o CPF - um mero cadastro de contribuintes, segundo a lei que o criou - já está se tornando documento de identidade por orientação do ITI, órgão criado pela MP 2.200, diretamente subordinado à Presidência da República.
Em momentos diversos ao longo dos últimos anos, afirmamos que os Tribunais, pela via de meros provimentos (como este do TRT-4) destinados a "regulamentar" a informatização processual, sistemas de envio remoto de petições e coisas afins, estavam na verdade dispondo sobre matéria própria ao Direito Processual. Legislavam, portanto.
O Conselho Federal da OAB chegou a apresentar Pedido de Providências ao Conselho Nacional de Justiça (Pedido de Providências nº 64) contra provimentos do TST que amplamente tratavam de matéria processual, dispondo sobre direitos e deveres de quem envia petições remotamente por sistemas informáticos da Justiça do Trabalho.
E, agora, o TJ-SP, por meio de uma Resolução, estabeleceu normas para o "processo eletrônico" que também têm nítido caráter normativo, prevendo ditames que ultrapassam a esfera de sua administração (esfera restrita em que o Tribunal poderia baixar normas por meio atos administrativos internos).
Nada disso, porém, causa reação ou reflexão, senão de uns poucos. Não importa o bem que supostamente tais normas pretendem causar. Via de regra, esse "bem" não chega nunca... Ou o princípio da legalidade existe e é obedecido, ou deixemos logo de crer no Estado de Direito.
Mas é notícia de hoje que a AMB decidiu questionar no STF a atuação do CNJ, afirmando que não cabe a este último a função de legislar. Não vou entrar no mérito desta questão, mesmo porque foge do foco deste blog. Se o CNJ estiver mesmo criando normas sobre direitos e deveres de qualquer brasileiro, isso evidentemente está errado e viola o princípio da legalidade. Não me causaria surpresa se de fato estiver, porque já se tentou, naquele órgão, também normatizar o "processo eletrônico", embora não me ocorra que isso tenha motivado resistência da AMB.
Apoio a defesa do princípio da legalidade, ora promovida pela AMB.
Não cabe ao CNJ legislar. Se estiver legislando, que não o faça.
E, já que os juízes estão agora refletindo sobre a questão, poderiam aproveitar e se debruçar sobre outras tantas violações que a reserva legal vem sofrendo neste país, especialmente as que se originam do próprio Poder Judiciário, ou do mesmo CNJ, quando se propõem a "regulamentar" o "processo eletrônico".
O Estado de Direito agradecerá!
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